quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Einstein, ciência e Religião

Einstein foi um símbolo de união entre religião e ciência?


Discutir religião e ciência, – sem que haja polêmica e duelos retóricos entre religiosos e cientistas, – tornou-se uma obra de uma dialética alvoroçada entre os seus respectivos adeptos. Mas isto não é coisa de causar espanto, pois há discórdia até mesmo entre religiosos e religiosos, cientistas e cientistas.

Recentemente, em uma propaganda passada na televisão (foto), lê-se a interrogativa “e se religião e ciência fizessem as pazes?”. “Curiosamente”, ao fundo, enquanto a frase é referida, vê-se a figura simpática do Cientista Albert Einstein. Subtende-se (óbvio) que ele aparece ali como um símbolo de união entre religião e ciência. Soma-se isso com a sua famosa proposição “a religião sem ciência é cega – e a ciência sem religião é paralítica”. Sem se aprofundar sobre tal assunto, o que irá discorrer neste texto está mais para um breve esclarecimento de um fato curioso do que propriamente uma analogia.

Antes de se conjeturar sobre uma junção de religião e ciência, a partir de tal propaganda, é preciso entender bem a religiosidade de Einstein e compará-la outros tipos de religião, visto que a religião do cientista difere em muitos aspectos do cristianismo e de qualquer forma de religião organizada. Deve-se levar em conta que estas religiões tradicionais não podem ser confundidas com a religião citada na frase do cientista, pois suas divergências à ciência nos passam uma idéia ilusória de união.

Einstein era Judeu e na sua infância era bastante religioso no senso comum; mas depois de um tempo, quando teve os primeiros contatos com livros científicos populares, passou a ver que varias histórias da bíblia não poderiam ser verdade, o que lhe rendeu uma efetiva liberdade de pensamento. Foi dessa forma que começou a se interessar em desmistificar a natureza e passou a não mais crer em um Deus imagem e semelhança do homem, que castigava ou recompensava o seu próprio objeto de criação. Ele afirmou, também, que não fazia idéia de um espírito que germinava tais idéias – de castigo e recompensa – que interferisse no destino e nos afazeres da humanidade; que mudasse tudo no mundo – como se fosse em um jogo de dados. “Tal ser, se assim fosse, seria um fraco, medroso e estupidamente egoísta”, disse.

Antes de se tomar uma idéia ateísta de Einstein é preciso esclarecer uma dúvida: sim, Einstein acreditava em Deus. Porém, a idéia que ele tinha sobre este era dessemelhante da opinião das massas, porque estas tinham uma imagem antrofóbica de Deus e se organizavam em igrejas para suplicar perdão pelos pecados e que realizasse seus interesses pessoais. A religião de Einstein consistia em desvendar os mistérios da natureza usando a razão através do método científico, pois só assim ele acreditava poder desvendar a essência dos homens, latentes na natureza. Portanto, a busca por desvendar esses mistérios era a sua verdadeira devoção. Isso ficou evidenciado quando ele falou que “esta é a experiência que constitui a atitude genuinamente religiosa. E neste sentido, somente neste sentido, eu pertenço aos homens profundamente religiosos.”

A evidência de que realmente Einstein acreditava que Deus existia, dava-se por ele ter uma intensa certeza de um poder superior que se revela no universo, algo que não podemos penetrar e o conhecemos e compreendemos apenas em forma elementar. Einstein preservava a essência da espiritualidade humana, a qual se inspira a liberdade para a dedicação ao que existe de mais importante para a humanidade: o mundo em que vivemos e as pessoas com quem dividimos a nossa existência.

Einstein desprezava qualquer tipo de religião organizada porque as considerava autoritária, repressora e enfática nas questões hierarquicas e de poder, e tudo isso seria contraditório a essência da espiritualidade humana.

Por esse motivo, algumas pessoas de sua época entenderam que ele seria um ateu disfarçado em teorias não convincentes sobre Deus. Outros diziam que sua religiosidade se encaixava no panteísmo (onde se acredita que Deus e a natureza são a mesma coisa). Mas, se avaliarmos bem, quando ele falou: “acredito no mesmo deus que Espinosa[1] chamava alma do universo, e não em um Deus que se preocupa com o destino e as necessidades pessoais da humanidade”, nota-se um aproximamento maior com o deísmo, já que acreditava em um Deus criador, mas não pessoal e que não interfere no universo, não está associado ás idéias de pecado e redenção, perdão ou graça.

O pensamento religioso de Einstein – definitivamente – era muito diferente das religiões ligadas ao cristianismo (ou não) que se mantêm de forma organizada. Estas, enfim, vão de encontro ao pensamento cientifico, o qual mostra através de experimentos e pesquisas que algumas histórias da bíblia (como o dilúvio, o caso do mar vermelho, pangéia etc.) não podem ser absolutamente verdade. Contudo, para a ciência, as historias da bíblia não são totalmente descartadas, já que alguns desses fenômenos são “extraordinariamente” mencionados. Porém, as partes que descrevem fenômenos sobrenaturais, são vistas como exageração. Isso se deve porque há evidencias de que existiram realmente alguns fenômenos naturais mencionados na bíblia; todavia, para a ciência, isso deve ser levado em conta como exagero.

Com isso, mostrar a figura simpática de Einstein na propaganda pode ter tido as melhores das intenções; mas tê-lo como símbolo de união entre religião e ciência é, no mínimo, perigoso. Pois a religião de Einstein, explicada no discorrer do texto, difere (e muito) das religiões de uma grande massa; que através de dogmas teológicos opõe-se em vários aspectos ao pensamento científico.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Estrela do Norte

Era sempre um prazer presenciar àquele velho senhor passar. Era um senhor daqueles bem velhinho, velhinho mesmo, caindo aos pedaços (como o povo diz), branquelo e curvado, caminhava lento e com auxilio de uma bengala.
Certa vez, na quitanda do seu Jota, aproveitando-se de uma reunião informal, onde havia dez ou mais pessoas – uns conversando assuntos de homens, outros tomavam uma cachacinha entre um cigarrinho e outro – o velhinho pediu a atenção dos presentes e contou uma história de sua adolescência:

“Quando eu completei meus dezessete anos de idade, ganhei do meu pai uma faca, uma bela faca, uma faca mermo porreta; botei o nome dela de “Estrela do Norte. Escutem! Este nome foi dado por causa do brilho, brilhava que era danada, e o brilho se concentrava mais intensamente e bonito na sua ponta. Mas eu, que modéstia parte sempre fui intelgente, vi logo que não era simplesmente um presente de aniversario; meu pai, desconfiado como era, deu essa faca para mim foi porque ele se preocupava com a minha segurança, pois, meus amigos, era perigoso demais o vilarejo onde eu morava, lá pras bandas da região central do maranhão, perto de Barra do Corda. Eita lugarzinho infame. Siô, o que se ouvia de historias de morte não era brincadeira: “Ah, mataram o filho de fulano, deram quinze facadas nele; ah, mataram o dono do comércio, jogaram o corpo dele lá na mata. Graças a Deus eu nunca precisei usar essa ‘belezura’ (mostrando a faca) pra poder me defender, só usava ela quando eu fosse polir, apreciar o brilho... eu mal saía de casa."

Depois da historia contada, a turma que o ouviu batizou o nobre velhinho com um apelido carinhoso: "Estrela do Norte", o mesmo nome que seu pai alcunhara a faca. O apelido foi bem aceito pelo velhinho.

Bastava encontrá-lo outra vez, em qualquer lugar, pra alguém o cumprimentar, chamando-o pelo apelido.

“Estrala do norte!’’– chamava alguém quando o velho passava.

Ele, no mais das vezes, hesitava em procurar a direção da voz, todavia bastava ele por os olhos no seu dono, ou outra pessoa que nada tina a ver (era demasiado debilitado para distinguir a direção dos sons emitidos e ligá-lo ao seu respectivo dono) para curvar os joelhos, apontar a bengala para o céu e aos gritos responder com versos:

“Estrela do norte
Ponta fina e boa de corte
Quem tem medo, não brinca com a sorte
Uma mão acena pra vida
E um olho pisca pra morte”


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O Que dizia os Cotovelos?

Rodrigues de almeida

OLAVO preferiu ficar afastado do resto da classe quando num acampamento na praia, e, sozinho, sentou-se numa cadeira improvisada de tronco de árvore, na areia, próximo às ondas do mar. Enquanto a turma se divertia próximo à fogueira, Olavo se pôs a meditar; trazia consigo um bloco de notas e lápis (era um instante conveniente pra compor mais um de seus poemas, pra publicar na sua coluna do jornal da escola). Olavo demorava na contemplação da paisagem; a frente dele havia um cenário deslumbrante: O mar sereno e a lua. Mas atrapalhava-se com o barulho dos que faziam baderna, numa muvuca que fizeram os colegas a poucos metros. Não tinha ele concentração para escrever. O que durou a contemplação da paisagem só lhe rendera um rabisco:

“O lua, o mar"


Fora interrompido pela algazarra que aumentava a cada minuto. Resolveu parar pra continuar assim que acabasse a zorra.
Quando, enfim, a paz lhe veio, silenciosa, pôs os olhos de volta ao bloco de notas e fez menção de voltar a escrever, mas fora interrompido por uma voz que surgiu por trás de si:
― Olavo! ― a voz estridente a lhe chamar causou-lhe sobressalto. Na verdade foi um grito seguido de bater de palmas (fato que fizera o pobre escritor desequilibrar-se, deixar cair o bloco de notas e desajeitar os óculos no rosto). Apanhou o bloco de notas e colocou por cima das pernas, olhou por sobre o ombro o autor do berro. Era autora: Patrícia, a loirinha de aparelho dentário e rosto tomado por espinhas. A menina, sem ser convidada, nem bem recebida – que deu a mostra o rosto áspero de Olavo – sentou-se perto de Olavo, apertou-lhe a mão e disparou-se a falar:
― Olavo, eu li o jornal de quinta-feira; sua coluna é a minha preferida. Cara... aquele poema... meu deus... muito bom!
― Obrigado ― agradeceu ainda tomado pelo susto.
Não demorou nem um segundo pra que Patrícia “desembestasse” a babujar:
―Ah! Já sei! Veio escrever no seu diário!
Olavo, vacilante:
¬― É que...
Patrícia, interrompendo de novo:
― Nossa! Você está escrevendo mais uns de seus versos! É uma poesia? Posso ficar aqui esperando você terminar?
― Olha...
― È que fico ansiosa toda vez, antes de ler o jornal; e agora fiquei ansiosa pra ler antes de ser publicada.

Olavo hesitava; estava sem graça; confundia-se com as palavras da loira que falava velozmente e ofegante.
A loirinha continuou a importuná-lo:
― Ah! O poema de quinta-feira, Olavo, me lembrou quando meu pai falava de literatura pra mim; achei-o semelhante a um poema que diz assim:

“O amor é fogo que queima sem arder...
É ferida que sara sem se ver...
È um contente descontentado...”

Olavo fez uma cara de quem viu uma assombração, recolheu os ombros e quase fez um ponto de interrogação com as sobrancelhas.
Patrícia hesitou. Colocou a mão no queixo, os olhos pro céu e, desconfiada, continuou:

“O amor que desatina sem doer...
É o não contentar-se de contente...”

Olavo, horrorizado com a tentativa desastrosa de Patrícia recitar Camões, pegou o lápis e fixou os olhos no bloco de notas, ajustou os óculos no nariz e se pôs a escrever, mas fora novamente interrompido:
― Minha mãe também ama literatura; ela sempre recitava, na minha infância, poesias do famoso Poeta... Poeta... É... Chico... Chico Tolete... Francisco Toledo! Isso! Francisco Toledo é o nome do poeta.
Olavo hesitou e buscou na mente alguma lembrança do tal poeta, mas percebeu que nunca ouvira falar de tal sujeito (Nem eu). Desconfiou da existência do poeta. Voltou-se para a loirinha e antes de abrir a boca para falar-lhe, ela, outra vez o interrompeu:
―Ah! São ótimas as poesias dele. São voltadas pra crianças, mas...
A garota disparou-se a falar incansavelmente. Olavo estava na iminência de explodir em desespero. Dividia a atenção entre a algazarra que resurgira, a loirinha faladeira, e o bloco de notas. A loirinha continuava a falação sem se cansar. Olavo enrubesceu a testa e fez bico, demonstrou agastamento; mas a loirinha parecia não enxergar as notáveis vertigens do poeta, e nem se importava se era ouvida ou não, continuava a falar-lhe num ritmo impressionante.
A impaciência de Olavo dera lugar à uma fúria notável pelo tremor frenético do olho direito, que dera lugar a uma cólera evidente (ofegava). Olavo agarrou o bloco de notas com as mãos trêmulas e o posicionou, ― com mau-jeito, ― por sobre as pernas; inclinou o tronco até chegar com a cabeça perto do bloco de notas e, ignorando a loira, com muito esforço, se pôs a escrever com furor. O lápis corria papel e produzia um som audível à loirinha que, por fim, notou a impaciência do escritor. Com um movimento largo, Olavo bateu com a ponta do lápis no bloco de notas e cessou a escrita (parece que esta ação servira para dar o ponto final ao texto). Patrícia colocou a mão no rosto e se mostrou envergonhada pela situação constrangedora: Olavo com os óculos quase caindo do rosto, corpo trêmulo (o escritor parecia um epilético). Fora uma cena espantosa. Olavo colocou a mão na testa e suspirou. Pegou o bloco de notas que estava caído, arrancou-lhe a folhinha que escrevera e a lançou longe.
― Você está se sentindo bem, Olavo? – a loirinha perguntou baixinho, ainda um tanto envergonhada, quando viu Olavo cabisbaixo e ofegante e com as mão cobrindo o rosto.
Olavo tirou as mãos do rosto e revelou uma seriedade que parecia disfarçar o desconforto e disse:
― È só uma dor de cabeça, nada demais.
―Quer um analgésico?
― Não... Não precisa... Eu já vou me recolher, só preciso descansar.
Patrícia, ainda espantada pela cena esquisita, desejou boa noite para Olavo que, sem correspondê-la, rapidamente se levantou e se retirou.
Sozinha, Patrícia demorou numa meditação. Mas de súbito se pôs a procurar o rascunho excluído pelo poeta, pois lhe despertou curiosidade em saber o que escrevera Olavo. O vento carregou pra longe o pedaço de papel e patrícia não o conseguiu achar. Sem êxito na caçada, a loirinha deixou o local onde estava a pouco com o escritor e foi se misturar com a turma que conversava em volta da fagueira.


No dia seguinte...

No amanhecer, antes de o sol se mostrar por completo, um pescador, perto do local do acampamento, caminhava com suas tralhas de pescar nos ombros, quando notou um flutuante pedacinho de papel que lhe prendera a atenção, largou as tralhas no chão e apanhou a folhinha, pôs-se a ler:

Ó lua, Ó mar...
Aqui do cais,
Só céu, só mar.
Do que mais
Posso falar?

Ò poema pela metade,
Desculpe-me por não tratar de fazê-lo,
Pois travei vão combate
Com palavras que diziam os cotovelos.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O ócio e a Cartilagem

Escrito pelo meu amigo Ulisses Senil; autor da premiada obra "O Assassinato de Charllenne"




O ócio e a Cartilagem


ESCREVIA muito distante das letras e bem próximo do tédio, tão próximo que podia sentir seu hálito fúnebre com cheiro de café...
As idéias fluíam de uma maneira tão parca que me assustavam. Talvez conseguisse reunir num engodo toda a parcimônia e publicar uma obra de prestigiadíssimo garbo. Um compêndio tão tedioso que de tão tedioso não o seria! Estupendo!
Pensando bem, não gosto muito do garbo tão pouco do tédio, sem falar que linha que transcende o tédio é a vida, quebrando-a, desembocamos no suicídio. Então que fiquemos alheios a estes assuntos taciturnos tanto quanto a língua fica alheia ao bocejo.
Falando em bocejo, me flagrei bocejando em cima de meus próprios escritos! Estava indiferente aos meus rascunhos, como se fosse um esposo olhando a volúpia de sua mulher frígido, compelido pelo fastio dos anos de matrimônio, embora ela ainda conservasse a beleza.
Nesses instantes em que a mente beira o desespero, em que o espelho do mar parece uma barreira intransponível, eis que emerge o insólito se debatendo como peixe! O insólito, tão brusco ao mesmo tempo tão tênue...
Vejam! Meu nariz caiu! Meu nariz deslocou-se da fossa nasal e caiu sobre meus escritos!
Não acreditei em tamanho absurdo, mas aos poucos fui digerindo a idéia de ver aquele pedaço de carne. Na verdade não conseguia vê-lo como meu próprio nariz. O reneguei de imediato. Olhei-o com desdém, com truculência. “O que fazes ai, seu pedaço de carne, sobras de corizas? Seu bastardo! Negaste a própria cara!”.
Notei que ele respirava. Ri! Deleitei-me com a risada mais inaudível que pude soprar em toda minha vida. “AHAHAHA, tu respiras pra quê seu furunculoso? Respiras pra quê se não tem pulmões?”.
Ria incessantemente até me recordar dos meus escritos implausíveis. Tenho que achar o engodo da minha ultima idéia e assim guinar minhas próximas prelações... Bem, estava escrevendo até que meu nariz caiu sobre a folha... "MEU DEUS! Estou sem nariz! Sem nariz, oh pai! Pode existir maior infortúnio do que ficar sem o próprio nariz? Desgraçada seja minha execrável existência! Desafortunados sejam meus escritos! Meus escritos, oh meus escritos..."
Pensando melhor, pra que eu quero um nariz? “Pra que te quero criatura infame? Sentirei sua falta apenas quando escarrar minhas corizas, mas se não tiver nariz, não terei coriza. Saudades de ti pra quê?”.
Ouvi um murmúrio... Era alguém agonizando... Olhei pro lado, olhei por outro, pra trás, pra frente... Era o nariz... Meu Deus! Não sabias que tinhas vida! Quando falei que respirava estava apenas com xistos! “Fique sabendo”, me direcionei ao nariz, “que não me arrependo do que falei, criatura! E se quiseres que repita eu o farei!”.
Quando me preparava para destilar toda minha execração ele começou a falar bem baixinho e acabou me atalhando. Murmurou alguma coisa, mas não entendi. Abaixei-me mais para ouvi-lo, disse outra coisa inaudível com muito escorço, mas também não entendi - ele era fanho, fato que o torna mais desgraçado - abaixei mais um pouco e ele repetiu com força e com raiva:
- Não vedes que uma cabeça sem nariz é o prelúdio do esqueleto, é o prelúdio do crânio?!
-Ahn?
Fiquei perplexo com tamanha afirmativa e com o tom profético, embora fanho.
Como pode? Além de atrapalhar minhas divagações sobre parcimônia, tédio e falta de inspiração, ainda vem me retorquir! Não estou pronto para tamanho desplante!
Mas, mesmo que doa, o infeliz estava certo. Uma cabeça sem nariz é o prelúdio da caveira. Não posso protelar, ele está certo. Imagine você sair pela rua e dar de cara com uma caveira?! Seria capaz de prendê-lo por infração ao pudor!
Resolvi apelar pela complacência nasal:
- Perdoe-me, querido narizinho. Não queres voltar ao seu lugar de origem? Não queres voltar para onde reina a plenitude? Não queres voltar como a parábola do filho pródigo?
- Falso! – disse o nariz com veemência – Não voltarei se não pedires com ternura...
Descontrolei-me:
- Ah é? Você não quer voltar, né? E você aceitará o sôfrego destino de ser fanho pelo resto da vida?
- Mas eu não sou fanho!
- É sim! Fanho, fanho, fanho!
- Cara de caveira!
- Fanho!
- Cara de caveira!
- Fanho!
- Cara de caveira!
- CHEGA!!! Olha, seu verme, se quiseres passar a vida todo toda ruminando coriza e falando esquisito, o problema é seu! ... Mas, por favor, volte... Não me acostumarei a outro nariz que não seja você... Volte...
Ele pensou um pouco e com quê de desdém. Era sádico, maquiavélico. Seria capaz de me fazer implorar de joelhos. De suplicar. De louvá-lo! Mas eu não o faria, nem que tenha que carregar o pior dos pesares...
- Decidi – disse o fanho com o semblante sádico – Só voltarei se você...
- Não! – atalhei – Não te quero mais! Não quero o inimigo sustentando meus óculos!
- Você quem sabe, eu não tenho nada a perder!
A discussão era ávida. Estávamos, eu e o meu nariz, num verdadeiro esgrima e a qualquer hora um ia tombar. Silenciamos... Qualquer barulho seria tão letal como um erro do toureiro... Fitamo-nos. Eu esperava ele dizer alguma coisa. Ele o mesmo. O clima era tenso. Engoli o cuspe seco da coragem e falei:
- Seu fanho!!!
Ele retorquiu:
- Seu cara de caveira!!!
Retruquei:
- Seu fanho!!!
Ele respondeu:
- Seu cara de caveira!!!
- Seu fanho!
- Cara de caveira
- Fanho!
- Cara de caveira!...


Ulisses Senil

sábado, 16 de janeiro de 2010

Os Simplistas

Rodrigues de Almeida

Passou-se na avenida do Edifício Planta Tower, no bairro Renascença II, área nobre de São Luís, que fui, sozinho, depois de uma manhã corrida, beber uma cerveja, – quando ainda o sol das duas horas rachava o céu, – num barzinho-quiosque que fica no centro de uma pracinha.
Tocava-se, bem baixinho, uma música instrumental de orquestra de Bumba-meu-boi, e eu gostava.
Enquanto eu dava poderosas goladas, numa veemência de quem tem sede exorbitante, lia superficialmente os ofícios, declarações e mais “meio-mundo” de outros documentos oficiais, que por pouco tempo me fez distraído, pois deu canseira, dediquei-me somente a cerveja.
Depois de vários goles, não pensava eu em nada, isso é uma virtude de quando bebo só; pensar em nada sempre me der prazer, é como se fosse um descanso para as idéias, pois nem só o corpo pode descansar, já que enquanto este dorme a mente sonha: sonhar também causa canseira.
Notei ao meu lado dois idosos que também bebiam; estes, em voz alta, conversavam sem cessar sobre política, e isso me distraiu, acordou-me do transe, zanguei-me.
Não podia eu fazer nada, pois estava num bar, e é burrice pedir silêncio num bar.
Nada fiz senão me conformar. Fiz-me atento a conversação.
Um trecho:

― Você acredita em democracia plena nesse pais, Elias?
― O Quê, Zé Maria? Hipocrisia plena? Há-há-há-há...
― Há-há-há... (apertaram-se as mãos)
― Ditadura disfarçada. Isso sim!
― Não: putaria plena! Há-há-há-há
― Vão legalizar a maconha: senvergonhice plena!

(...)

― Temos direito de voto secreto, mas não temos direito de não votar.
― Só temos obrigações.
― Aqui, direito é obrigação.
― E a impunidade?

(...)

― E o Sarney?
― Há-há-há-há...
― Há-há-há-há...

domingo, 10 de janeiro de 2010

Um Contra-senso

Rodrigues de Almeida

TIO BERNARDO conversava com o seu amigo Edgar coisas que não me fizeram atencioso; preferia eu ficar sentado a observar as pessoas que se movimentavam pela estreita ruazinha de paralelepípedo cercada por casarões antigos, onde, hoje, funcionam bares, botecos, salões de dança folclórica, hotéis, casas de artesanato, etc.
Era uma sexta-feira, dia preferido para as pessoas da cidade frequentarem o centro histórico da cidade pra passear em família, conversar entre amigos, tomar cerveja, etc. O relógio contava 17h54min, hora em que o sol começava a se inclinar e aumentava o fluxo de pessoas pelas vielas históricas.
Depois de algum tempo, cansado de contemplar o lugar e as pessoas, pus-me a ouvir a conversação entre o meu tio e seu amigo. Este falava coisas do seu trabalho, enquanto Tio Bernardo se mostrava atento, com uma mão no queixo e enrubescendo de vez em quando a testa. De súbito, Tio Bernardo interrompeu a conversa dando toquinhos no ombro de Edgar e apontou pra algo atrás deste.

― Vire-se! ― disse Tio Bernardo. ― Olhe aquela cena!
Edgar se virou ligeiro, fitou a cena lhe apontada, e exclamou dessa forma:
― Nossa Senhora! O quê aquele... Nossa Senhora! Viu aquilo, Bernardo?

A cena era de violência: uma mulherzinha, aparentemente frágil, recebia socos de um homenzarrão. A pobrezinha estava demasiada debilitada por causa dos golpes, pois mal podia caminhar. O Homem gritava ao seu ouvido e lhe puxava os cabelos. A frágil mulher se pôs de pé com dificuldades; mas o bruto, com um golpe de pé, -la outra vez precipitar-se ao chão. O homem ligeiramente içou a pobrezinha pelos cabelos (fato que fez a mulher soltar um desesperado gemido de dor) e a obrigou caminhar ao seu mesmo ritmo, xingando-a. Era uma penúria o estado da mulher. A cena que presenciávamos era assombrosa: a mulher sendo levada à força por um brutamonte estúpido e sem recato.

― Barbaridade! Exclamou Edgar levantando-se da cadeira. ― Alguém tem que...
Tio Bernardo interrompeu Edgar advertindo-lhe:
― Antes de pensar em fazer algo, Edgar, não o faça; aquele monstro pode estar armado.
As pessoas que também estavam na rua, nesse momento, olhavam o massacre sem menos assombramento. Tal como Tio Bernardo, Edgar e eu, a população não fazia menção de se intrometer.
O homem arrastava a mulher em nossa direção numa velocidade assustadora, fato este que acelerou a passagem do casal pela rua.
As pessoas emudeceram com a passagem do casal. O homem passou sem olhar pros lados, de testa enrubescida e rosto áspero. Estava de pés descalço, vestia uma calça branca e era despido da cintura pra cima. Notava-se que na cintura do homem havia um cabo de faca exposta e a lâmina escondida dentro da calça.
A mulher (coitada), era literalmente arrastada, uma vez que não tinha condição de caminhar por si própria; as vestes amassadas e sujas “combinavam” com o cabelo arrepiado; um pé era calçado e o outro não; o rosto era desfigurado, apinhado de hematomas e sangue; um olho se escondia atrás de um inchaço arroxeado. A mulher desventurada cerrava os dentes de tanta dor.
Os olhos de todos acompanharam o casal até sumir na curva. Na mesa em que eu estava como tio Bernardo e Edgar. Pairou um silêncio, e os semblantes das pessoas se assemelhavam em terror.
Edgar tomou a palavra:
― Sim, Bernardo, você estava realmente certo: quem a fosse ajudar poderia agravar a situação: ele poderia usar a faca pra se proteger.

Tio Bernardo, depois de uma breve pausa, ainda assustado pela cena que acabara de presenciar, lamentou dessa forma:
― É, meus amigos, muitos homens neste mundo, infelizmente, fazem jus a grandeza do corpo; num simples golpe de misericórdia usam demasiada força, como tiranos.

Assim como o autor da frase acima, Edgar e eu nos deixamos refletir. Depois de um tempo de silêncio o amigo do meu tio cessou a meditação dizendo:
― São de fato grandes e fortes, mas seus cérebros são do tamanho de um espermatozóide.
― Eu conheço um que teme a morte ― disse eu.
Tio Bernardo passou a mão pelos cabelos, fixou o olhar para um ponto que não me fiz saber, e disse-nos:
― Quanta estupidez! Esses homens vivem para serem grandes e fortes. Onde eles encontram prazer nisso? O que fazem além de arruaça? Ninguém me convence que há prazer em fazer baderna.
Edgar se sentou, acendeu um cigarro, colocou na tulipa uma quantia de conhaque e, antes de bebê-la, disse o seguinte:
― Meu avô , num dos seus costumeiros discursos de princípios humanos, quando eu era criança, dizia que homens desse jeito, de tão grandes, fazem pequeno a vida e morte, e por isso morrem tão cedo: não cabem na vida.
Enquanto Edgar falava, tio Bernardo repetiu o que Edgar fez a pouco: serviu-se de uma tulipa de conhaque, bebeu-a, fez careta, relinchou, e ao notar o cessar das palavras do amigo, percebeu-se em um contra-senso que lhe causara desconforto notavém somente por causa dos olhos, pois estes fugiam, e dava a perceber que os ouvidos também.. Chamou-nos a atenção com um gesto de mão, e chegou a seguinte conclusão:
­ ― Ora! Ora! Ora! Eis aqui três porcos sujos fazendo pouco-caso dos “mal-lavados.” Falamos como se fossemos santos imaculados e livres do pecado.
E dirigindo-se a Edgar:
Olhe pra você, Edgar: um médico de renome, mas que já se casou mais vezes que trocou de carro, e vivi das migalhas que te sobram das pensões que paga aos teus “trocentos” filhos que tens por ai.
E dirigindo-se a mim:
― Olhe pra você, sobrinho; não passa de um fedelho.
Tio Bernardo abriu os braços e nos chamou a atenção dessa forma: ― E gora me olhem.
Tio Bernardo fez pausa e dividia o olhar entre Edgar e eu. O olhar era medonho e intimidante, ao ponto de emudecer. Depois de um tempo continuou interrogando dessa forma: ― Vamos! O que vos vedes? Pois muito bem; ouçam:
Eis um projeto de matemático e um filósofo frustrado que noventa e nove vezes pensa, noventa e noves vezes age; mas que além de delírios contestáveis, nada descobre: noventa e nove vezes falha.
Tio Bernardo bateu com a mão na mesa ― fato que produziu um sonoro estalo ― e disse: ― Depressa, Edgar, sirva-me um conhaque e dê-me um cigarro.