terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O ócio e a Cartilagem

Escrito pelo meu amigo Ulisses Senil; autor da premiada obra "O Assassinato de Charllenne"




O ócio e a Cartilagem


ESCREVIA muito distante das letras e bem próximo do tédio, tão próximo que podia sentir seu hálito fúnebre com cheiro de café...
As idéias fluíam de uma maneira tão parca que me assustavam. Talvez conseguisse reunir num engodo toda a parcimônia e publicar uma obra de prestigiadíssimo garbo. Um compêndio tão tedioso que de tão tedioso não o seria! Estupendo!
Pensando bem, não gosto muito do garbo tão pouco do tédio, sem falar que linha que transcende o tédio é a vida, quebrando-a, desembocamos no suicídio. Então que fiquemos alheios a estes assuntos taciturnos tanto quanto a língua fica alheia ao bocejo.
Falando em bocejo, me flagrei bocejando em cima de meus próprios escritos! Estava indiferente aos meus rascunhos, como se fosse um esposo olhando a volúpia de sua mulher frígido, compelido pelo fastio dos anos de matrimônio, embora ela ainda conservasse a beleza.
Nesses instantes em que a mente beira o desespero, em que o espelho do mar parece uma barreira intransponível, eis que emerge o insólito se debatendo como peixe! O insólito, tão brusco ao mesmo tempo tão tênue...
Vejam! Meu nariz caiu! Meu nariz deslocou-se da fossa nasal e caiu sobre meus escritos!
Não acreditei em tamanho absurdo, mas aos poucos fui digerindo a idéia de ver aquele pedaço de carne. Na verdade não conseguia vê-lo como meu próprio nariz. O reneguei de imediato. Olhei-o com desdém, com truculência. “O que fazes ai, seu pedaço de carne, sobras de corizas? Seu bastardo! Negaste a própria cara!”.
Notei que ele respirava. Ri! Deleitei-me com a risada mais inaudível que pude soprar em toda minha vida. “AHAHAHA, tu respiras pra quê seu furunculoso? Respiras pra quê se não tem pulmões?”.
Ria incessantemente até me recordar dos meus escritos implausíveis. Tenho que achar o engodo da minha ultima idéia e assim guinar minhas próximas prelações... Bem, estava escrevendo até que meu nariz caiu sobre a folha... "MEU DEUS! Estou sem nariz! Sem nariz, oh pai! Pode existir maior infortúnio do que ficar sem o próprio nariz? Desgraçada seja minha execrável existência! Desafortunados sejam meus escritos! Meus escritos, oh meus escritos..."
Pensando melhor, pra que eu quero um nariz? “Pra que te quero criatura infame? Sentirei sua falta apenas quando escarrar minhas corizas, mas se não tiver nariz, não terei coriza. Saudades de ti pra quê?”.
Ouvi um murmúrio... Era alguém agonizando... Olhei pro lado, olhei por outro, pra trás, pra frente... Era o nariz... Meu Deus! Não sabias que tinhas vida! Quando falei que respirava estava apenas com xistos! “Fique sabendo”, me direcionei ao nariz, “que não me arrependo do que falei, criatura! E se quiseres que repita eu o farei!”.
Quando me preparava para destilar toda minha execração ele começou a falar bem baixinho e acabou me atalhando. Murmurou alguma coisa, mas não entendi. Abaixei-me mais para ouvi-lo, disse outra coisa inaudível com muito escorço, mas também não entendi - ele era fanho, fato que o torna mais desgraçado - abaixei mais um pouco e ele repetiu com força e com raiva:
- Não vedes que uma cabeça sem nariz é o prelúdio do esqueleto, é o prelúdio do crânio?!
-Ahn?
Fiquei perplexo com tamanha afirmativa e com o tom profético, embora fanho.
Como pode? Além de atrapalhar minhas divagações sobre parcimônia, tédio e falta de inspiração, ainda vem me retorquir! Não estou pronto para tamanho desplante!
Mas, mesmo que doa, o infeliz estava certo. Uma cabeça sem nariz é o prelúdio da caveira. Não posso protelar, ele está certo. Imagine você sair pela rua e dar de cara com uma caveira?! Seria capaz de prendê-lo por infração ao pudor!
Resolvi apelar pela complacência nasal:
- Perdoe-me, querido narizinho. Não queres voltar ao seu lugar de origem? Não queres voltar para onde reina a plenitude? Não queres voltar como a parábola do filho pródigo?
- Falso! – disse o nariz com veemência – Não voltarei se não pedires com ternura...
Descontrolei-me:
- Ah é? Você não quer voltar, né? E você aceitará o sôfrego destino de ser fanho pelo resto da vida?
- Mas eu não sou fanho!
- É sim! Fanho, fanho, fanho!
- Cara de caveira!
- Fanho!
- Cara de caveira!
- Fanho!
- Cara de caveira!
- CHEGA!!! Olha, seu verme, se quiseres passar a vida todo toda ruminando coriza e falando esquisito, o problema é seu! ... Mas, por favor, volte... Não me acostumarei a outro nariz que não seja você... Volte...
Ele pensou um pouco e com quê de desdém. Era sádico, maquiavélico. Seria capaz de me fazer implorar de joelhos. De suplicar. De louvá-lo! Mas eu não o faria, nem que tenha que carregar o pior dos pesares...
- Decidi – disse o fanho com o semblante sádico – Só voltarei se você...
- Não! – atalhei – Não te quero mais! Não quero o inimigo sustentando meus óculos!
- Você quem sabe, eu não tenho nada a perder!
A discussão era ávida. Estávamos, eu e o meu nariz, num verdadeiro esgrima e a qualquer hora um ia tombar. Silenciamos... Qualquer barulho seria tão letal como um erro do toureiro... Fitamo-nos. Eu esperava ele dizer alguma coisa. Ele o mesmo. O clima era tenso. Engoli o cuspe seco da coragem e falei:
- Seu fanho!!!
Ele retorquiu:
- Seu cara de caveira!!!
Retruquei:
- Seu fanho!!!
Ele respondeu:
- Seu cara de caveira!!!
- Seu fanho!
- Cara de caveira
- Fanho!
- Cara de caveira!...


Ulisses Senil

sábado, 16 de janeiro de 2010

Os Simplistas

Rodrigues de Almeida

Passou-se na avenida do Edifício Planta Tower, no bairro Renascença II, área nobre de São Luís, que fui, sozinho, depois de uma manhã corrida, beber uma cerveja, – quando ainda o sol das duas horas rachava o céu, – num barzinho-quiosque que fica no centro de uma pracinha.
Tocava-se, bem baixinho, uma música instrumental de orquestra de Bumba-meu-boi, e eu gostava.
Enquanto eu dava poderosas goladas, numa veemência de quem tem sede exorbitante, lia superficialmente os ofícios, declarações e mais “meio-mundo” de outros documentos oficiais, que por pouco tempo me fez distraído, pois deu canseira, dediquei-me somente a cerveja.
Depois de vários goles, não pensava eu em nada, isso é uma virtude de quando bebo só; pensar em nada sempre me der prazer, é como se fosse um descanso para as idéias, pois nem só o corpo pode descansar, já que enquanto este dorme a mente sonha: sonhar também causa canseira.
Notei ao meu lado dois idosos que também bebiam; estes, em voz alta, conversavam sem cessar sobre política, e isso me distraiu, acordou-me do transe, zanguei-me.
Não podia eu fazer nada, pois estava num bar, e é burrice pedir silêncio num bar.
Nada fiz senão me conformar. Fiz-me atento a conversação.
Um trecho:

― Você acredita em democracia plena nesse pais, Elias?
― O Quê, Zé Maria? Hipocrisia plena? Há-há-há-há...
― Há-há-há... (apertaram-se as mãos)
― Ditadura disfarçada. Isso sim!
― Não: putaria plena! Há-há-há-há
― Vão legalizar a maconha: senvergonhice plena!

(...)

― Temos direito de voto secreto, mas não temos direito de não votar.
― Só temos obrigações.
― Aqui, direito é obrigação.
― E a impunidade?

(...)

― E o Sarney?
― Há-há-há-há...
― Há-há-há-há...

domingo, 10 de janeiro de 2010

Um Contra-senso

Rodrigues de Almeida

TIO BERNARDO conversava com o seu amigo Edgar coisas que não me fizeram atencioso; preferia eu ficar sentado a observar as pessoas que se movimentavam pela estreita ruazinha de paralelepípedo cercada por casarões antigos, onde, hoje, funcionam bares, botecos, salões de dança folclórica, hotéis, casas de artesanato, etc.
Era uma sexta-feira, dia preferido para as pessoas da cidade frequentarem o centro histórico da cidade pra passear em família, conversar entre amigos, tomar cerveja, etc. O relógio contava 17h54min, hora em que o sol começava a se inclinar e aumentava o fluxo de pessoas pelas vielas históricas.
Depois de algum tempo, cansado de contemplar o lugar e as pessoas, pus-me a ouvir a conversação entre o meu tio e seu amigo. Este falava coisas do seu trabalho, enquanto Tio Bernardo se mostrava atento, com uma mão no queixo e enrubescendo de vez em quando a testa. De súbito, Tio Bernardo interrompeu a conversa dando toquinhos no ombro de Edgar e apontou pra algo atrás deste.

― Vire-se! ― disse Tio Bernardo. ― Olhe aquela cena!
Edgar se virou ligeiro, fitou a cena lhe apontada, e exclamou dessa forma:
― Nossa Senhora! O quê aquele... Nossa Senhora! Viu aquilo, Bernardo?

A cena era de violência: uma mulherzinha, aparentemente frágil, recebia socos de um homenzarrão. A pobrezinha estava demasiada debilitada por causa dos golpes, pois mal podia caminhar. O Homem gritava ao seu ouvido e lhe puxava os cabelos. A frágil mulher se pôs de pé com dificuldades; mas o bruto, com um golpe de pé, -la outra vez precipitar-se ao chão. O homem ligeiramente içou a pobrezinha pelos cabelos (fato que fez a mulher soltar um desesperado gemido de dor) e a obrigou caminhar ao seu mesmo ritmo, xingando-a. Era uma penúria o estado da mulher. A cena que presenciávamos era assombrosa: a mulher sendo levada à força por um brutamonte estúpido e sem recato.

― Barbaridade! Exclamou Edgar levantando-se da cadeira. ― Alguém tem que...
Tio Bernardo interrompeu Edgar advertindo-lhe:
― Antes de pensar em fazer algo, Edgar, não o faça; aquele monstro pode estar armado.
As pessoas que também estavam na rua, nesse momento, olhavam o massacre sem menos assombramento. Tal como Tio Bernardo, Edgar e eu, a população não fazia menção de se intrometer.
O homem arrastava a mulher em nossa direção numa velocidade assustadora, fato este que acelerou a passagem do casal pela rua.
As pessoas emudeceram com a passagem do casal. O homem passou sem olhar pros lados, de testa enrubescida e rosto áspero. Estava de pés descalço, vestia uma calça branca e era despido da cintura pra cima. Notava-se que na cintura do homem havia um cabo de faca exposta e a lâmina escondida dentro da calça.
A mulher (coitada), era literalmente arrastada, uma vez que não tinha condição de caminhar por si própria; as vestes amassadas e sujas “combinavam” com o cabelo arrepiado; um pé era calçado e o outro não; o rosto era desfigurado, apinhado de hematomas e sangue; um olho se escondia atrás de um inchaço arroxeado. A mulher desventurada cerrava os dentes de tanta dor.
Os olhos de todos acompanharam o casal até sumir na curva. Na mesa em que eu estava como tio Bernardo e Edgar. Pairou um silêncio, e os semblantes das pessoas se assemelhavam em terror.
Edgar tomou a palavra:
― Sim, Bernardo, você estava realmente certo: quem a fosse ajudar poderia agravar a situação: ele poderia usar a faca pra se proteger.

Tio Bernardo, depois de uma breve pausa, ainda assustado pela cena que acabara de presenciar, lamentou dessa forma:
― É, meus amigos, muitos homens neste mundo, infelizmente, fazem jus a grandeza do corpo; num simples golpe de misericórdia usam demasiada força, como tiranos.

Assim como o autor da frase acima, Edgar e eu nos deixamos refletir. Depois de um tempo de silêncio o amigo do meu tio cessou a meditação dizendo:
― São de fato grandes e fortes, mas seus cérebros são do tamanho de um espermatozóide.
― Eu conheço um que teme a morte ― disse eu.
Tio Bernardo passou a mão pelos cabelos, fixou o olhar para um ponto que não me fiz saber, e disse-nos:
― Quanta estupidez! Esses homens vivem para serem grandes e fortes. Onde eles encontram prazer nisso? O que fazem além de arruaça? Ninguém me convence que há prazer em fazer baderna.
Edgar se sentou, acendeu um cigarro, colocou na tulipa uma quantia de conhaque e, antes de bebê-la, disse o seguinte:
― Meu avô , num dos seus costumeiros discursos de princípios humanos, quando eu era criança, dizia que homens desse jeito, de tão grandes, fazem pequeno a vida e morte, e por isso morrem tão cedo: não cabem na vida.
Enquanto Edgar falava, tio Bernardo repetiu o que Edgar fez a pouco: serviu-se de uma tulipa de conhaque, bebeu-a, fez careta, relinchou, e ao notar o cessar das palavras do amigo, percebeu-se em um contra-senso que lhe causara desconforto notavém somente por causa dos olhos, pois estes fugiam, e dava a perceber que os ouvidos também.. Chamou-nos a atenção com um gesto de mão, e chegou a seguinte conclusão:
­ ― Ora! Ora! Ora! Eis aqui três porcos sujos fazendo pouco-caso dos “mal-lavados.” Falamos como se fossemos santos imaculados e livres do pecado.
E dirigindo-se a Edgar:
Olhe pra você, Edgar: um médico de renome, mas que já se casou mais vezes que trocou de carro, e vivi das migalhas que te sobram das pensões que paga aos teus “trocentos” filhos que tens por ai.
E dirigindo-se a mim:
― Olhe pra você, sobrinho; não passa de um fedelho.
Tio Bernardo abriu os braços e nos chamou a atenção dessa forma: ― E gora me olhem.
Tio Bernardo fez pausa e dividia o olhar entre Edgar e eu. O olhar era medonho e intimidante, ao ponto de emudecer. Depois de um tempo continuou interrogando dessa forma: ― Vamos! O que vos vedes? Pois muito bem; ouçam:
Eis um projeto de matemático e um filósofo frustrado que noventa e nove vezes pensa, noventa e noves vezes age; mas que além de delírios contestáveis, nada descobre: noventa e nove vezes falha.
Tio Bernardo bateu com a mão na mesa ― fato que produziu um sonoro estalo ― e disse: ― Depressa, Edgar, sirva-me um conhaque e dê-me um cigarro.