domingo, 10 de janeiro de 2010

Um Contra-senso

Rodrigues de Almeida

TIO BERNARDO conversava com o seu amigo Edgar coisas que não me fizeram atencioso; preferia eu ficar sentado a observar as pessoas que se movimentavam pela estreita ruazinha de paralelepípedo cercada por casarões antigos, onde, hoje, funcionam bares, botecos, salões de dança folclórica, hotéis, casas de artesanato, etc.
Era uma sexta-feira, dia preferido para as pessoas da cidade frequentarem o centro histórico da cidade pra passear em família, conversar entre amigos, tomar cerveja, etc. O relógio contava 17h54min, hora em que o sol começava a se inclinar e aumentava o fluxo de pessoas pelas vielas históricas.
Depois de algum tempo, cansado de contemplar o lugar e as pessoas, pus-me a ouvir a conversação entre o meu tio e seu amigo. Este falava coisas do seu trabalho, enquanto Tio Bernardo se mostrava atento, com uma mão no queixo e enrubescendo de vez em quando a testa. De súbito, Tio Bernardo interrompeu a conversa dando toquinhos no ombro de Edgar e apontou pra algo atrás deste.

― Vire-se! ― disse Tio Bernardo. ― Olhe aquela cena!
Edgar se virou ligeiro, fitou a cena lhe apontada, e exclamou dessa forma:
― Nossa Senhora! O quê aquele... Nossa Senhora! Viu aquilo, Bernardo?

A cena era de violência: uma mulherzinha, aparentemente frágil, recebia socos de um homenzarrão. A pobrezinha estava demasiada debilitada por causa dos golpes, pois mal podia caminhar. O Homem gritava ao seu ouvido e lhe puxava os cabelos. A frágil mulher se pôs de pé com dificuldades; mas o bruto, com um golpe de pé, -la outra vez precipitar-se ao chão. O homem ligeiramente içou a pobrezinha pelos cabelos (fato que fez a mulher soltar um desesperado gemido de dor) e a obrigou caminhar ao seu mesmo ritmo, xingando-a. Era uma penúria o estado da mulher. A cena que presenciávamos era assombrosa: a mulher sendo levada à força por um brutamonte estúpido e sem recato.

― Barbaridade! Exclamou Edgar levantando-se da cadeira. ― Alguém tem que...
Tio Bernardo interrompeu Edgar advertindo-lhe:
― Antes de pensar em fazer algo, Edgar, não o faça; aquele monstro pode estar armado.
As pessoas que também estavam na rua, nesse momento, olhavam o massacre sem menos assombramento. Tal como Tio Bernardo, Edgar e eu, a população não fazia menção de se intrometer.
O homem arrastava a mulher em nossa direção numa velocidade assustadora, fato este que acelerou a passagem do casal pela rua.
As pessoas emudeceram com a passagem do casal. O homem passou sem olhar pros lados, de testa enrubescida e rosto áspero. Estava de pés descalço, vestia uma calça branca e era despido da cintura pra cima. Notava-se que na cintura do homem havia um cabo de faca exposta e a lâmina escondida dentro da calça.
A mulher (coitada), era literalmente arrastada, uma vez que não tinha condição de caminhar por si própria; as vestes amassadas e sujas “combinavam” com o cabelo arrepiado; um pé era calçado e o outro não; o rosto era desfigurado, apinhado de hematomas e sangue; um olho se escondia atrás de um inchaço arroxeado. A mulher desventurada cerrava os dentes de tanta dor.
Os olhos de todos acompanharam o casal até sumir na curva. Na mesa em que eu estava como tio Bernardo e Edgar. Pairou um silêncio, e os semblantes das pessoas se assemelhavam em terror.
Edgar tomou a palavra:
― Sim, Bernardo, você estava realmente certo: quem a fosse ajudar poderia agravar a situação: ele poderia usar a faca pra se proteger.

Tio Bernardo, depois de uma breve pausa, ainda assustado pela cena que acabara de presenciar, lamentou dessa forma:
― É, meus amigos, muitos homens neste mundo, infelizmente, fazem jus a grandeza do corpo; num simples golpe de misericórdia usam demasiada força, como tiranos.

Assim como o autor da frase acima, Edgar e eu nos deixamos refletir. Depois de um tempo de silêncio o amigo do meu tio cessou a meditação dizendo:
― São de fato grandes e fortes, mas seus cérebros são do tamanho de um espermatozóide.
― Eu conheço um que teme a morte ― disse eu.
Tio Bernardo passou a mão pelos cabelos, fixou o olhar para um ponto que não me fiz saber, e disse-nos:
― Quanta estupidez! Esses homens vivem para serem grandes e fortes. Onde eles encontram prazer nisso? O que fazem além de arruaça? Ninguém me convence que há prazer em fazer baderna.
Edgar se sentou, acendeu um cigarro, colocou na tulipa uma quantia de conhaque e, antes de bebê-la, disse o seguinte:
― Meu avô , num dos seus costumeiros discursos de princípios humanos, quando eu era criança, dizia que homens desse jeito, de tão grandes, fazem pequeno a vida e morte, e por isso morrem tão cedo: não cabem na vida.
Enquanto Edgar falava, tio Bernardo repetiu o que Edgar fez a pouco: serviu-se de uma tulipa de conhaque, bebeu-a, fez careta, relinchou, e ao notar o cessar das palavras do amigo, percebeu-se em um contra-senso que lhe causara desconforto notavém somente por causa dos olhos, pois estes fugiam, e dava a perceber que os ouvidos também.. Chamou-nos a atenção com um gesto de mão, e chegou a seguinte conclusão:
­ ― Ora! Ora! Ora! Eis aqui três porcos sujos fazendo pouco-caso dos “mal-lavados.” Falamos como se fossemos santos imaculados e livres do pecado.
E dirigindo-se a Edgar:
Olhe pra você, Edgar: um médico de renome, mas que já se casou mais vezes que trocou de carro, e vivi das migalhas que te sobram das pensões que paga aos teus “trocentos” filhos que tens por ai.
E dirigindo-se a mim:
― Olhe pra você, sobrinho; não passa de um fedelho.
Tio Bernardo abriu os braços e nos chamou a atenção dessa forma: ― E gora me olhem.
Tio Bernardo fez pausa e dividia o olhar entre Edgar e eu. O olhar era medonho e intimidante, ao ponto de emudecer. Depois de um tempo continuou interrogando dessa forma: ― Vamos! O que vos vedes? Pois muito bem; ouçam:
Eis um projeto de matemático e um filósofo frustrado que noventa e nove vezes pensa, noventa e noves vezes age; mas que além de delírios contestáveis, nada descobre: noventa e nove vezes falha.
Tio Bernardo bateu com a mão na mesa ― fato que produziu um sonoro estalo ― e disse: ― Depressa, Edgar, sirva-me um conhaque e dê-me um cigarro.

2 comentários:

Samyle Lindsay disse...

O tio Bernardo deve ter uma vida frustrada, ó.
Se bem que com esse desfecho provou que ele acertou a sua 'uma vez' que restava.
Adorei :D

Anna Vitória disse...

Gostei muito. É uma visão interessante esta.
beijos